29 de setembro de 2008

Comer é divertido!


Nessas minhas andanças aqui pela rede, encontrei uma matéria da revista Vida Simples, que aliás eu adoro!
No texto a seguir dá pra ter uma clara idéia do que pretendemos com este Projeto. Além de pricipalmente encontrar os amigos, queremos promover o contato com o samba de Campinas através do CASA CAIADA. O Grupo vai apresentar um convidado a cada encontro e é neste movimento que a roda cresce e a gente aprecia!
Embalados por suas composições e arranjos próprios e suas interpretações para outros sambas, serviremos uma comidinha especial, feita com alegria e amor. É por isso que o contexto é íntimo, fora dos locais públicos. A idéia é receber os nossos amigos, os amigos dos nossos amigos e os amigos dos amigos dos amigos.
Nesse ritimo, quem sabe um dia a gente não vira as "as tias do samba" da "roda dos bambas"? Quanta honra!
Vamos à matéria! Por Roberta de Lucca

Mesa de bambas

Numa boa roda de samba a música não começa ao redor da mesa, com cavaquinho, violão, pandeiro e cantoria. Naquelas com pedigree, o samba começa antes, num batuque cadenciado pelo picar do alho, o cortar das carnes, o cair do feijão na bacia de metal, o tampar e destampar das panelas. É na cozinha que tem início a alquimia da criação de um ritmo musical que nasceu no Brasil no despertar do século 20. Tanto que os sambistas afirmam sem engasgar: batuque sem comida sinhá não quer. Para eles, nada melhor que um bom prato para alimentar os músicos ao longo de muitas horas de cantoria e de quebra amenizar os efeitos das várias cervejas avidamente consumidas como se todas as reservas de lúpulo e cevada do planeta estivessem prestes a acabar.

Esse cenário músico-gastronômico, que viu nascer e inspirou nomes como Paulinho da Viola, Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Dudu Nobre e Tereza Cristina, entre outros, surgiu no Rio de Janeiro quase ao mesmo tempo em que próprio samba. Os músicos se reuniam para tocar e ganhavam uma refeição preparada pela dona da casa. Os tempos mudaram, mas no roteiro de criação dos compositores a comida é personagem tão importante quanto o mestre-sala e a porta-bandeira são para o Carnaval.Um prato fumegante não falta na roda de samba seja nas quadras das escolas, seja nos pagodes (aqui respeitamos a etimologia da palavra, que significa reunião de pessoas que tocam e cantam o pagode original, e não o gênero consagrado nos últimos anos pela indústria fonográfica) ou nas reuniões nas casas das tias da velha guarda, que perpetuaram um hábito que nasceu com tia Ciata há mais de um século.E não tenha dúvida: a comilança ritmada é um dos elementos mais agregadores nas comunidades que vivem a realidade do samba.
Na batucada da vida
Senta que lá vem história. A baiana Hilária Batista de Almeida, a Ciata, era doceira famosa na Praça Onze, região da capital carioca que concentrou os negros mais pobres expulsos do Centro da cidade durante a grande reurbanização do Rio, em 1902. Ciata vendia doces de tabuleiro vestida com roupas de baiana e, para engordar o ganha-pão, alugava trajes típicos e abria sua casa para políticos, figurões da sociedade e jornalistas que iam lá provar comida baiana e conhecer o pagode. Na sala, dos cavaquinhos e violões saíam polcas, maxixes e choros muitos deles tocados por Pixinguinha. Nos quartos e na sala de jantar tinha lugar o samba corrido, com palmas marcando o ritmo da música, enquanto o quintal, ou terreiro, era palco da batucada com gingas de capoeira e trabalhos de candomblé, prática comum naquelas comunidades.

Invariavelmente a polícia fazia batidas na casa de Ciata e nas outras que organizavam festas similares, para prender os desocupados que participavam do candomblé e do samba de terreiro. Por conta disso, ter uma roda de choro na sala era boa desculpa para confundir os policiais. Soava como um disfarce. E foi assim, dando um gingado na lei, que o samba se cristalizou. De acordo com o pesquisador musical Sérgio Cabral, a casa de tia Ciata foi o berço do primeiro samba gravado: Pelo Telefone, registrado por Donga em 1917.

Ordem no terreiro
Tia Ciata é um ícone desse capítulo da história da música brasileira não só porque ajudou no nascimento desse estilo musical, mas também porque deu a ele a estrutura moral que consolidou a comunidade do samba. Ela morreu em 1924 e deixou como legado a generosidade, a alegria e a imposição do respeito matriarcal num ambiente repleto de homens, mulheres e bebida combustíveis de uma receita que poderia ter resultados inflamáveis, não fosse ela colocar ordem nas coisas e inspirar suas sucessoras.Tanto que o termo tia era usado com respeito, algo bem diferente da forma quase pejorativa como é dito hoje.

Em sua terceira geração, Ciata teve herdeiras de peso: Surica, Doca, Neném e Eunice, todas da Velha Guarda da Portela, todas com vasto currículo em festas no quintal. Com 86 anos, tia Eunice Fernandes da Silva já se aposentou da cozinha.Meu coração cresceu e não posso fazer esforço. Nem posso andar ou falar muito, diz a mulher que preparava uma galinha ao molho pardo de bater palmas. Já a incansável Doca, batizada Jilçária Cruz Costa, até hoje organiza pagodes dominicais em casa, na rua João Vicente, 129, em Madureira. Lá ela serve, para mais de 300 pessoas, uma imbatível sopa de ervilha, entre outras iguarias.

Tia Doca aprendeu a cozinhar com a mãe e com ela vendia sopa de entulho no cais do porto. Essa mesma sopa de nome esquisito, feita com abóbora, chuchu, batata-doce, batata- inglesa, cenoura e nabo, Doca serviu emsua casa durante os ensaios da Velha Guarda da Portela, na metade dos anos 1970. E continuou a prepará- la (além da campeoníssima sopa de ervilha) mesmo depois de ter sido abandonada pelo marido, o que culminou com o fim dos ensaios em seu terreiro.Eu precisava sustentar meus filhos e me mantive com o pagode, diz. O pagode da tia Doca, o mais famoso do Rio, alimentou o então franzino Zeca Pagodinho, que apareceu por lá pela primeira vez com 17 para 18 anos.No livro Batuque na Cozinha, do jornalista Alexandre Medeiros, Zeca registra a fartura gastronômica: Comida não faltava nos quintais: era caldo verde, feijão, tripa lombeira, comida de malandro, comida de sambista. Comida boa.

Neném, ou Yolanda de Almeida Andrade, tocou com o marido, o sambista Manacéa, o primeiro terreiro de ensaios da Velha Guarda portelense, antes de Doca. Um prato que a turma gostava muito era galinha com quiabo, mas eu mesma não gosto, confessa a cozinheira, que dá a receita do sucesso no fogão: tem que fazer a comida com carinho e prazer para ela sair gostosa (e nem precisa ser numa roda de samba para cozinhar assim). Aos 80 anos, Neném já não tem tanta disposição para pilotar o fogão, mas conta com a ajuda das filhas entre elas Áurea Maria, da Velha Guarda para fazer pratos que aquecem o estômago e o coração em datas comemorativas.

Dar de comer aos músicos e a quem chega ao pagode é celebrar a atmosfera familiar.Por isso nunca houve confusão nos terreiros. Há mesmo uma rígida moralidade ditando o comportamento de todos. Seleciono quem entra. Pergunto quem é e com quem veio. Aqui não pode ter agarramento e não pode ficar bêbado de cair, explica Iranete Barcellos, a Surica, responsável pela feijoada da Portela (realizada no primeiro sábado do mês na quadra da escola) e também por comandar os pagodes em comemorações especiais na sua casa, na rua Júlio Fragoso, 25, em Madureira.

Ainda menino, o sambista Dudu Nobre ia com a mãe ao pagode da tia Doca com um cavaquinho de brinquedo embaixo do braço. Ele garante que crescer nesse ambiente contribuiu inclusive para sua formação moral.Nos terreiros aprendi a valorizar a família e ganhei estrutura para não me envolver com polêmica para ter sucesso, afirma. Outra figura importante do samba carioca que fez escola no terreiro foi Tereza Cristina. Ela aprendeu muito do que sabe no Cafofo da Surica (nome do terreiro), convivendo com grandes nomes do samba. Em retribuição, compôs o samba Cafofo da Surica, gravado pela tia em seu único CD.Essas reuniões são como o gol para o futebol. A música é o resultado de um encontro de amor entre pessoas que estão se confraternizando, diz.

Rango, suor e ritmo
A boa comida é um ingrediente essencial nos encontros de sambistas. Imagine um grupo de pessoas que fica entre seis e sete horas tocando, cantando e bebendo sem ingerir comida de verdade. Beliscar um tiragosto até quebra um galho, mas não se compara a um prato de comida. Por conta da ancestralidade da culinária afro-brasileira, o resultado é um cardápio substancioso: feijoada, rabada, angu, mocotó, galinha com quiabo, grão-de-bico e sopas de ervilha e legumes. Tudo cozinhado conforme a tradição, com galinhas compradas vivas, carnes selecionadas pelo açougueiro amigo, legumes superfrescos. Enfim,tudo de primeira, afirma tia Surica. E o que dá o toque especial são os truques.

Em vez de óleo, tia Doca usa banha e não abusa do sal. A experiente mulher que já fez 30 quilos de feijoada para uma festa de Beth Carvalho ensina: Coloco todas as carnes, inclusive pé, rabo e orelha de porco,mas deixo de molho no dia anterior com vinagre e limão. No dia seguinte lavo bem lavadinho e tempero com limão, louro, alho, cebola e sal e cozinho.Tia Surica aposta no alho como tempero fundamental. Ele é a alma da comida, diz. Enquanto ferve a rabada, tia Neném vai tirando o excesso de gordura da panela. A comida grosseira que fazemos pode até pesar no estômago de quem não está acostumado, mas mal não faz, afirma.

Embora essas comidas não agradem a todos os paladares, não se pode negar que sejam balanceadas. A feijoada, por exemplo, contém proteína, carboidrato e fibras.Tem tudo o que o organismo precisa, diz a nutricionista Érika Suiter.Outra vantagem é que essa comida diminui a absorção do álcool pelo organismo.Como se vê, a refeição garante a energia para a batucada e evita dissabores com a bebida. E, para preservar a qualidade, as tias se recusam a aumentar a comida quando chega mais gente. Não tem essa de pôr mais água no feijão, as pessoas não são cachorro.Acabou, acabou, afirma tia Doca, que incluiu no cardápio churrasquinho e batata frita para as emergências do estômago.

Assim, com amor e dedicação, as tias alimentaram um número incontável de pessoas ao longo de décadas. Hoje confessam que estão cansadas e vão se distanciando das panelas. Embora tenham feito escola, uma coisa para qual as tias não terão substitutas é o estilo pessoal com que comandam seus quintais. O samba de terreiro autêntico vai desaparecer com elas. Existem muitos pagodes bons no Rio, mas nenhum é como o delas. Mesmo que tenham deixado herdeiras, os tempos mudaram e os interesses das pessoas são outros. Ninguém mais se dedica ao samba e à comida como as tias, afirma a cineasta Anna Azevedo, que dirigiu o curta Batuque na Cozinha e retrata a saga das quatro tias da Portela. No documentário, a própria tia Eunice exemplifica a afirmação de Anna. Ela diz: As tias mais velhas foram se acabando. Esse tipo está existindo só assim, na Velha Guarda. Talvez não, espera-se.Afinal, o samba (e a comilança) não podem parar.

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